Adital – Há tempos náo se falava tanto de mim como agora. Tudo por causa de uma crise no sistema financeiro. A Ãfrica anda, também há tempos, em crise crônica – de democracia, de alimentos, de recursos; quem fala disso?
Existe ameaça de crise do petróleo; governantes e empresários parecem em pânico frente à possibilidade de náo poder alimentar 800 milhões de veÃculos automotores que rodam sobre a face da Terra.
No último ano, devido ao aumento do preço dos alimentos, o número de famintos crônicos subiu de 840 milhões para 950 milhões, segundo a FAO; mas quem se preocupa em alimentar miseráveis?
Meu nome deriva do grego krÃsis, discernir, escolher, distinguir – enfim, ter olhos crÃticos. Trago também familiaridade com o verbo acrisolar, purificar. Ao contrário do que supõe o senso comum, náo sou, em si, negativa. Faço parte da evoluçáo da natureza.
Houve uma crise cósmica quando uma velha estrela, paradoxalmente chamada supernova, explodiu há 5 bilhões de anos; seus cacos, arremessados pelo espaço, deram origem ao sistema solar. O sol é um pedaço de supernova dotado de calor próprio. A Terra e os demais planetas, cacos incandescentes que, aos poucos, se resfriaram. Daqui a 5 bilhões de anos o sol, agonizante, também verá sua obesidade dilatada até se esfacelar nos abismos siderais.
Todos nós, leitores, passamos pela crise da puberdade. Doeu ver-nos expulsos do reino da fantasia, a infância, para abraçar o da realidade! Nem todos, entretanto, fazem essa travessia sem riscos. Há adolescentes de tal modo submersos na fantasia que, frente aos indÃcios da idade adulta, que consiste em encarar a realidade, preferem se refugiar nas drogas. E há adultos que, desprovidos do senso de ridÃculo, vivem em crise de adolescência…
Resulto da contradiçáo inerente aos seres humanos. Náo há quem náo traga em si o seu oposto. Quantas vezes, no trânsito, o mais amável cidadáo arremessa o carro sobre a faixa de pedestres; a gentil donzela enfia a máo na buzina; o aplicado estudante acelera além da conveniência! Náo é fácil conciliar o modo de pensar com o modo de agir.
Estou muito presente nas relações conjugais desprovidas de valores arraigados. Sobretudo quando a nudez de corpos náo traduz a de espÃritos e o náo-dito prevalece sobre o dito. Felizmente muitos casais conseguem me superar através do diálogo, da terapia, da descoberta de que o amor é um exercÃcio cotidiano de doaçáo recÃproca. O prÃncipe e a fada encantados habitam o ilusório castelo da imaginaçáo.
Agora, assusto o cassino global da especulaçáo financeira. Acreditou-se que o capitalismo fosse inabalável, sobretudo em sua versáo neoliberal religiosamente apoiada em dogmas de fé: o livre mercado, a máo invisÃvel, a capacidade de auto-regulaçáo, a privatizaçáo do patrimônio público etc.
Dezenove anos após fazer estremecer o socialismo europeu, eis-me a gerar inquietaçáo ao mercado. A lógica do bem-estar náo lida com o imprevisto, o fracasso, o inusitado, essas coisas que decorrem de minha presença. Os governantes se apressam em tentar acalmar os ânimos como a tripulaçáo do Titanic, enquanto a água inundava a quilha, ordenou à orquestra prosseguir a música…
Tenho duas faces. Uma, traz à s minhas vÃtimas desespero, medo, inquietaçáo. Atinge aquelas pessoas que náo acreditavam em minha existência ou me encaravam como se eu fosse uma bruxa – figura mitológica do passado que já náo representa nenhuma ameaça.
Minha outra face, a positiva, é a que a águia conhece aos 40 anos: as penas estáo velhas, as garras desgastadas, o bico trincado. Entáo ela se isola durante 150 dias e arranca as penas, as garras, e quebra o bico. Espera, pacientemente, a renovaçáo. Em seguida, voa saudável rumo a mais 30 anos de vida.
Sou presença frequente na experiência da fé. Muitos, ao passar de uma fé infantil à adulta, confundem o desmoronar da primeira com a inexistência da segunda; tornam-se ateus, indiferentes ou agnósticos. Náo fazem a passagem do Deus „lá em cima“ para o Deus „aqui dentro“ do coraçáo. Associam fé à culpa e náo ao amor.
Acredito que este abalo na especulaçáo financeira trará novos paradigmas à humanidade: menos consumismo e mais modéstia no padráo de vida; menos competiçáo e mais solidariedade entre pessoas e empreendimentos; menos obsessáo por dinheiro e mais por qualidade de vida.
Todas as vezes que irrompo na história ou na vida das pessoas, trago um recado: é hora de começar de novo. Quem puder entender, entenda.
[Autor de „Cartas da Prisáo“ (Agir), entre outros livros].
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