Adital – Natal é festa polissêmica. De certo modo, desconfortável. Para os cristáos, comemoraçáo do nascimento de Jesus, Deus feito homem. Para a indústria e o comércio, ocasiáo de promissoras vendas. Para uns tantos, miniférias de fim de ano. Para o peru, dia de finados.
O desconforto resulta da obrigatoriedade de dar presentes a quem náo amamos, mal conhecemos ou fingimos amizade. Transferido o presépio de Belém para o balcáo das lojas, substituÃdo Jesus por Papai Noel, a festa perde progressivamente o caráter religioso. O Menino da manjedoura, que evoca o sentido da existência, cede lugar ao velho barbudo e barrigudo, sÃmbolo do fetiche da mercadoria.
O olhar desavisado diria que o consumismo hedonista despe-nos da religiosidade. A Missa do Galo, outrora à meia-noite de 24 de dezembro, reduz-se ao galeto das celebrações, à s oito ou nove da noite, antecipando-se à madrugada na qual impera a violência urbana. O apetite da ceia e a curiosidade em abrir presentes falam mais alto que bons e velhos costumes: oraçáo em famÃlia, cânticos litúrgicos, narrativas bÃblicas, memória dos eventos paradigmáticos de Belém da Judéia.
Uma atualizaçáo dos eventos bÃblicos permite-nos imaginar, a partir do contexto brasileiro, o leitor do Diário de Belém, ediçáo de 26 de dezembro de 1, frente à seguinte notÃcia: „FamÃlia de sem-terra ocupou ontem a fazenda Estrela de Davi, em cujo pasto uma tal Maria, esposa do carpinteiro José, deu à luz o filho Jesus. A polÃcia de Herodes está no encalço dos sem-terra, que se encontram foragidos.“
A abstraçáo da linguagem, contudo, faz do pseudolirismo natalino o inverso do fato histórico. O Verbo encarnado perde contundência e cede lugar ao presépio descontextualizado, mero adorno à festa papainoélica.
Vivemos hoje assolados por fortes ventos esotéricos, nessa época epifânica em que religiões tendem a ocupar o lugar deixado pelas ideologias messiânicas. Assistimos à crise das Igrejas tradicionais, encerradas num monólogo ininteligÃvel para o contexto de pluralismo e tolerância com o diferente. A perplexidade assemelha-se à da professora de piano clássico que vê seus alunos aplaudirem os metaleiros.
Proliferam novas modalidades de aspirar ao Transcendente, da aeróbica litúrgica à s meditações orientais. Nunca houve, na expressáo de Rimbaud, tanta „gula de Deus“. I Ching, astrologia, búzios, tarô etc., sáo vias pelas quais se tenta encontrar segurança diante do futuro imprevisÃvel. Agora, já náo há tanto interesse pelas religiões das grandes narrativas bÃblicas, da santidade ascética, da autoridade sacralizada, da moral coercitiva, da escatologia que nos faz trafegar, titubeantes, sobre o fio invisÃvel que liga o Céu ao Inferno.
Predominam as religiões do consolo subjetivo, da alegria d’alma, da cura imediata, dos fenômenos paranormais, da comunidade que se sente resgatada do anonimato, de bênçáos e graças que jorram quais juros de quem acredita na versáo pós-moderna do dilema „a bolsa ou a vida“. Vigora a religiosidade prêt-à -porter, sem culpas, macroecumênica, fundada na crença em um Deus que dispensa hierarquias, manifesta-se pelas regras de ouro do marketing e tolera todas as nossas incoerências.
Talvez náo haja na literatura brasileira quem melhor tenha captado o sentido do Natal que Machado de Assis, no clássico conto Missa do Galo. Náo há propriamente missa, apenas a espera ansiosa num seráo que progressivamente transmuta a anfitriá Conceiçáo, que atingira os 30 anos, aos olhos de Nogueira, rapaz de 17. Machado faz do coraçáo do jovem narrador um profundo e aquiescente presépio, onde a vida renasce no sutil milagre do amor desinteressado. Um gosto de eternidade. De eterna idade. No entanto, quebrado pelo tempo que flui incoercÃvel ao ritmo implacável das horas. Na sala, a missa em torno da musa antecede e realiza a comunháo, eclodindo na beleza de um singelo encontro entre duas pessoas.
Isso é Natal, festa rara no mais profundo de si mesmo, na qual as pessoas se fazem presentes umas à s outras e entre as quais o amor refulge como estrela. Essa festa náo tem data e é celebrada sempre que há encontro em clima de afeto e sabor de comunháo. Ali, as palavras sáo como barbante de presente em máos de uma criança: a cada nó desfeito, uma expectativa de surpreendente revelaçáo.
[Autor de A arte de semear estrelas (Rocco), entre outros livros].
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