O cisma da hierarquia católica
Ivone Gebara *
Adital –
Os últimos acontecimentos envolvendo a interrupçáo da gravidez da menina de nove anos em Pernambuco evidenciaram um fato que já estava presente desde muito tempo na vida da Igreja Católica Romana. Os bispos perderam o senso de governarem unidos aos desafios da história e à fé da comunidade e julgam-se mais fiéis ao Evangelho de Jesus do que a própria comunidade. Por manterem uma compreensáo centralizadora e anacrônica de sua funçáo e da teologia que lhe corresponde desviaram-se de muitos sofrimentos e dores concretas das pessoas, sobretudo das mulheres. Passaram a ser defensores de princÃpios abstratos, de incertas hipóteses futurÃveis e pretenderam até ser advogados de Deus. A este acontecimento de distanciamento chamo de cisma. Os bispos tanto a nÃvel nacional quanto internacional, e aqui incluo também o Papa, como bispo de Roma, tornaram-se cismáticos em relaçáo à comunidade de cristáos católicos, isto é, romperam com grande parte dela em várias situações. O incidente em relaçáo à proibiçáo da interrupçáo da gravidez da menina do qual Dom José Cardoso Sobrinho, arcebispo de Olinda e Recife foi um dos protagonistas é um exemplo irrefutável. Sem dúvida há muitas pessoas e grupos que pensam como eles e que reforçam seu cisma. Faz parte do pluralismo no qual sempre vivemos.
A hierarquia da Igreja, servidora da comunidade dos fiéis náo pode em certas questões separar-se do sentido comum e plural da vivência da fé. Náo pode igualmente para certos assuntos de foro pessoal e mesmo grupal substituir-se à consciência, à s decisões e ao dever das pessoas. Pode emitir sua opiniáo, mas náo impô-la como verdade de fé. Pode expressar-se, mas náo forçar pessoas a assumir suas posições. Nesse sentido, náo pode instaurar uma guerra santa em nome de Deus para salvaguardar coisas que julga serem vontade e prerrogativa de Deus. A tradiçáo teológica na linha mais profética e sapiencial nunca permitiu que nenhum fiel mesmo bispo falasse em nome de Deus. E isto porque o deus do qual falamos fala em nosso nome e tem a nossa imagem e semelhança. O Sagrado Mistério que atravessa tudo o que existe é inacessÃvel aos nossos julgamentos e interpretações. O Mistério que em tudo habita náo precisa de representantes dogmáticos para defender seus direitos. Nossa palavra é nada mais e nada menos do que um balbuciar de aproximações e de idéias mutáveis e frágeis, inclusive sobre o inefável mistério. É nessa perspectiva que também náo se pode obrigar que a Igreja hierárquica torne, por exemplo, a legalizaçáo do aborto sua bandeira, mas simplesmente que náo impeça que uma sociedade pluralista se organize conforme as necessidades de suas cidadás e cidadáos e que estes tenham o direito de decidir sobre suas escolhas.As comunidades cristás assim como as pessoas sáo plurais. Num mundo táo diverso e complexo como o nosso, náo podemos admitir que apenas a opiniáo de um grupo de bispos, homens celibatários e com uma formaçáo limitada ao registro religioso, seja a expressáo do seguimento da tradiçáo do Movimento de Jesus. A comunidade cristá é mais do que a igreja hierárquica. E, a comunidade cristá é na realidade múltiplas comunidades cristás e estas sáo igualmente muitas pessoas cada uma com sua história, suas escolhas e decisões próprias diante da vida.
Impressiona-me o anacronismo das posturas filosóficas e éticas episcopais começando pelos bispos brasileiros e continuando nas instâncias romanas como se pode ler na entrevista que o cardeal Giovanni Batista Re, presidente da Congregaçáo para os bispos, deu a revista italiana Stampa concordando com a postura dos bispos brasileiros. Os tempos mudaram. Urge, pois, que a teologia dos bispos saia de uma concepçáo hierárquica e dualista do Cristianismo e perceba que é na vulnerabilidade à s múltiplas dores humanas que poderemos estar mais próximos das ações de justiça e amor. É claro que sempre poderemos errar inclusive querendo acertar. Esta é a frágil condiçáo humana.
Creio que nossas entranhas sentem em primeiro lugar as dores imediatas, as injustiças contra corpos visÃveis e é a eles que temos o primeiro dever de assistir. A consternaçáo e a comoçáo em relaçáo ao sofrimento da menina de nove anos foram grandes. E isto porque é a esta vida presente e atuante, a esta vida de menina feita mulher violada e violentada em nosso meio que devemos o respeito e o cuidado primeiros. Por isso como membro da comunidade cristá, louvo a atitude do Dr. Rivaldo Mendes de Albuquerque do Instituto Maternal Infantil de Recife assim como a máe da menina e todas as organizações e pessoas que acudiram a ela neste momento de sofrimento que certamente deixará marcas indeléveis em sua vida.
Diráo alguns leitores que minha postura náo é a postura oficial da Igreja Católica Romana. Entretanto, o que significa hoje a palavra oficial? O que é mesmo Igreja oficial? A instituiçáo que se arvora como representante de seu deus e ousa condenar a vida ameaçada de uma menina? A instituiçáo que se considera talvez a melhor seguidora do Evangelho de Jesus?
Náo identifico a Igreja à hierarquia católica. A hierarquia é apenas uma parte Ãnfima da Igreja.
A Igreja é a comunidade de mulheres e homens espalhada pelo mundo, comunidade dos que estáo atentos aos caÃdos nas estradas da vida, aos portadores de dores concretas, aos clamores de povos e pessoas em busca de justiça e alÃvio de suas dores hoje. A Igreja é a humanidade que se ajuda a suportar dores, a aliviar sofrimentos e a celebrar esperanças.
Continuar com excomunhões, inclusões ou exclusões parece cada vez mais incentivar o crescimento de relações autoritárias desrespeitosas da dignidade humana, sobretudo, quando surgem de instituições que pretendem ensinar o amor ao próximo como a lei maior. De quem Dom José Cardoso e alguns bispos se fizeram próximos nesse caso? Dos fetos inocentes, diráo eles, aqueles que precisam ser protegidos contra o „Holocausto silencioso“ cometido por algumas mulheres e seus aliados. Na realidade, fizeram-se próximos do princÃpio que defendem e se distanciaram da menina agredida e violentada tantas vezes. Condenaram quem levantou a menina caÃda na estrada da vida e salvaguardaram a pureza de suas leis e a vontade de seu deus. Acreditam que a interrupçáo da gravidez da menina seria uma lesáo ao senhorio de Deus. Mas as guerras, a crescente violência social, a destruiçáo do meio ambiente náo seriam igualmente lesões que mereceriam denúncia e condenaçáo maior? Perdoem-me se, sem querer acabo julgando pessoas, mas diante da inconsistência de certos argumentos e da insensibilidade aos problemas vividos pela menina de nove anos uma espécie de ira solidária me assola as entranhas.
De fato um cisma histórico está se construindo e tem crescido cada vez mais em diferentes paÃses. A distancia entre os fiéis e uma certa hierarquia católica é marcante. O incidente em relaçáo a interrupçáo da gravidez da menina pernambucana é apenas um entre os tantos atos de autoritarismo e desconhecimento da complexidade da história atual que a hierarquia tem cometido.
Na medida em que os que se julgam responsáveis pela Igreja se distanciam da alma do povo, de seu sofrimento real estaráo sendo os construtores de um novo cisma que acentuará ainda mais o abismo entre as instituições da religiáo e a simples vida cotidiana com sua complexidade, desafios, dores e pequenas alegrias. As conseqüências de um cisma sáo imprevisÃveis. Basta aprendermos as lições da história passada.
Termino este breve texto lembrando do que está escrito no Evangelho de Jesus de diferentes maneiras. Estamos aqui para viver a misericórdia entre nós. E todos nós necessitamos dessa misericórdia, único sentimento que nos permite náo ignorar a dor alheia e nos ajudarmos a carregar os pesados fardos uns dos outros.
Ivone Gebara
Teóloga e Filósofa
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