PLURALISMO MORAL E DIREITO À VIDA EM DIFERENTES CULTURAS
Foto Carmem Vaught
„As vezes ouve se ao longe o choro abafado da crianca, abandonada para morrer na mata. O choro só cessa quando a crianca desfalece, ou quando é devorada para algum animal. Ou quando algum parente, irritado com a insistencia daquele choro, resolve silencia-lo com uma flecha ou um porrete.“
(Laut Zitat hört man teils von weitem noch das Weinen des Kindes, das im Wald zum Sterben zurückgelassen wurde. “Das Weinen hört nur auf, wenn das Kind stirbt oder wenn es durch irgendein Tier aufgefressen wird. Oder wenn ein Verwandter, irritiert von diesem fortdauernden Weinen, beschließt, es mit einem Pfeil oder einem Knüppel zum Verstummen zu bringen.)
Nas sociedades modernas, cada vez mais secularizadas e pluralistas, o debate sobre a vida é cotidianamente atualizado e passa a exigir uma maior dedicaçáo à reflexáo sobre como ela se manifesta e é concebida em suas várias formas. Essa realidade impõe um debate permanente entre a pluralidade dos sistemas morais e a universalidade da experiência moral. O pluralismo reside nos conteúdos diferentes elaborados e validados em comunidades morais particulares. Já o ato de fazer, a obrigatoriedade que pesa sobre o agente moral em qualquer comunidade humana especÃfica e culturalmente distinta, constitui-se numa realidade universal. Dessa forma, se por um lado é universalmente consensual ”o dever de fazer, por outro resulta em grande dissenso ”o que fazer.           Como observa Schramm, estamos diante de um duplo desafio:Por um lado, levar em consideraçáo a especificidade da situaçáo dos conflitos particulares nos quais deve atuar a bioética, mas sem chegar ao extremo do relativismo moral; e, por outro lado, levar em consideraçáo o contexto da tradiçáo universalista do discurso moral, ainda que sem apagar as diferenças existentes entre as situações concretas, para evitar a discriminaçáo cÃnica de indivÃduos e de populações vulneráveis[3].            Em decorrência desta situaçáo posta, assistimos à s polêmicas batalhas em torno de temas complexos como uso de células tronco, aborto e eutanásia dentre outros. Neste contexto, tratar do Direito à Vida náo é uma tarefa fácil. Para os humanos, a grande interrogaçáo sobre esse seu principal objeto de desejo é permanente e sobrevive aos tempos. É verdade que muitas respostas já foram dadas, contudo náo sáo suficientemente satisfatórias para todas as culturas, embora possam atender  aos respectivos grupos humanos que as formularam a partir de explicações próprias, sejam elas culturais, religiosas ou cientÃficas.            Náo obstante a grandiosa e valiosa diversidade cultural, é fato que todos os seres humanos pertencem a uma única espécie, habitam no mesmo planeta e participam da mesma história da humanidade. Por isso, obrigam-se a ser solidários e estabelecer vÃnculos que possibilitem a todos viver e garantir a continuidade da espécie. Essa condiçáo humana exige a criaçáo de instrumentos que garantam a existência do planeta e de todas as formas de vida nele existentes. Em se tratando especificamente de vida humana – pois é a ela que se direciona nossa abordagem – no campo do Direito, um instrumento importante de proteçáo e valorizaçáo da vida é a Declaraçáo Universal dos Direitos Humanos, que a define como um Direito Fundamental. Tal entendimento foi sendo reafirmado e referendado pelo Direito Internacional desde a aprovaçáo da Declaraçáo e passou a ser adotado por todos os paÃses.           Contudo, o fato de a humanidade ter avançado para um consenso jurÃdico sobre o Direito Fundamental à Vida, náo implica que haja uma maneira única de concebê-la. Por conseguinte, as interrogações sobre ela continuam: o que  realmente é? Quando começa? Quando termina? Assim como teólogos, filósofos e cientistas, muitos outros fizeram incursões ao tema. O cantor e compositor Gonzaguinha, em uma de suas belas canções chegou a indagar: ”e a vida, o que é? Diga lá meu irmáo! Depois de responder com algumas afirmações feitas sempre na terceira pessoa do singular, constatou – ” e a pergunta rola e a cabeça agita “ e finalmente toma uma decisáo: ”eu fico com a pureza da resposta das crianças.           Aproveitando a criatividade do poeta, nos perguntamos: o que respondem entáo as crianças em sua pureza? Imaginemos a mesma pergunta a respeito da vida sendo respondida por cinco crianças de uma mesma idade: a primeira residente no complexo do Alemáo, no Rio de Janeiro; a segunda moradora do Lago Sul, em BrasÃlia; a terceira pertencente ao povo Makua de Moçambique; a quarta da etnia Curda do Iraque e a quinta indÃgena do povo Suruahá, localizado no Estado do Amazonas. Em um novo exercÃcio imaginativo, formulemos a mesma questáo para seus pais e em seguida para outras pessoas de suas comunidades. Talvez nos surpreendêssemos constatar que as respostas guardam menos identificaçáo entre os meninos e meninas de uma mesma faixa etária e encontram maior proximidade entre crianças, jovens e adultos pertencentes a um mesmo grupo étnico e social. Ainda que consideremos a pureza como uma caracterÃstica pueril universal, náo será essa capaz de determinar à s crianças de culturas diferentes ou grupos socialmente diferenciados uma mesma compreensáo a respeito da vida.             Este seminário nos convoca a refletir sobre ”as múltiplas dimensões do direito à vida e nos situa nas fronteiras da bioética fazendo-nos tomar consciência da complexidade dos temas aqui abordados, exigindo-nos todo o cuidado necessário para uma abordagem responsável e comprometida. Reconhecendo todas estas implicações, nos propomos aqui fazer algumas considerações sobre a prática do infanticÃdio nas culturas indÃgenas.           Embora comum em varias culturas ao longo do desenvolvimento da história da humanidade, o infanticÃdio constitui-se numa das mais controvertidas práticas de controle de natalidade. Talvez depois do incesto, condenável em quase todas as culturas, seja o tema mais complexo e por essa razáo evitado, silenciado e reduzido pelos códigos penais dos Estados ocidentais a um ato criminoso com sua correspondente tipificaçáo.            Nos últimos meses o tema tem aparecido com certa freqüência nas páginas policiais dos jornais que circulam nas várias regiões do Brasil. Dependendo da forma como a vÃtima foi eliminada pela máe, pode virar manchete de primeira página. O destaque é dado ao ato violento, à atitude criminosa e cruel de uma mulher, máe impiedosa, assassina sanguinária que destrói o fruto saÃdo de suas entranhas. A notÃcia assim veiculada, com todo o requinte inerente ao sensacionalismo peculiar de certos órgáos de imprensa, cumpre uma única funçáo: chocar a opiniáo pública. Outra vez  cairá no esquecimento até que uma outra máe assassina volte a cometer crime semelhante, náo consiga ocultá-lo dos órgáos de polÃcia e náo impeça sua conseqüente exposiçáo à mÃdia.           A prática do infanticÃdio e sua criminalizaçáo guarda relaçáo direta com o desenvolvimento histórico da humanidade. Na Europa, até o final do século XIX, ainda era bastante presente e motivo de grandes discussões. Acontecia principalmente entre mulheres solteiras que náo pretendiam se tornar máes e em muitos casos conseguiam transcorrer toda a gestaçáo em segredo. Com a descoberta de métodos contraceptivos, o avanço das lutas das mulheres pelo direito em dispor sobre o próprio corpo e a descriminalizaçáo do aborto, deixou de ser um problema no Continente Europeu, mas perdurou em outras regiões geográficas a exemplo de Ãfrica e Ãsia. No Continente Americano ainda ocorre entre algumas populações tradicionais e no Brasil pode ser identificado em alguns povos indÃgenas.           Tratado sempre como um tabu pelas sociedades modernas, o infanticÃdio nas antigas civilizações Grega e Romana era justificado por várias razões, inclusive como polÃtica de controle da natalidade. Tanto Platáo (República 5.460c), como Aristóteles (PolÃtica I,1335b) o aprovavam e recomendavam.           Nas produções acadêmicas recentes é geralmente tratado conjuntamente com o aborto, sobretudo, em pesquisas voltadas aos direitos reprodutivos femininos. Nesse sentido, merece destaque o livro organizado pela professora Joana Maria Pedro, do Depto. de História da UFSC, Práticas Proibidas e Práticas Costumeiras de Aborto e InfanticÃdio no Século XX. Trata-se de uma coletânea de diferentes autores, possibilitando uma abordagem diversificada sobre as práticas e como as mulheres as vivenciam, analisam e sofrem as conseqüências da reprovaçáo moral e da criminalizaçáo das mesmas. Em outro estudo semelhante, a antropóloga FabÃola Rhoden, no livro A arte de enganar a natureza: contracepçáo, aborto e infanticÃdio no inÃcio do século XX , publicado com base em sua pesquisa de doutorado, analisou trabalhos médicos, inquéritos policiais e processos judiciais da primeira metade do século XX, envolvendo casos de infanticÃdio e de aborto. Constatou que ”em alguns processos as categorias infanticÃdio e aborto chegavam mesmo a ser usadas indistintamente pelos agentes da polÃcia e da justiça[4]. O infanticÃdio também tem sido objeto de estudo em cursos de pós-graduaçáo na área de Medicina Legal e Direito Penal. Esses trabalhos ocupam-se do enfoque da matéria em sua implicaçáo criminal, procurando sempre localizar o ato criminoso e o tratamento recebido dentro do ordenamento jurÃdico brasileiro de acordo com o Código Penal vigente.           Mas mesmo tomando como referência apenas o tratamento dispensado pela lei, é possÃvel constatar que subjaz à descriçáo e estabelecimento da pena do crime de infanticÃdio uma imposiçáo do contexto cultural da época, sempre evidenciando um conflito moral impossÃvel de ser solucionado pelo texto legal.            No que se refere à especificidade do infanticÃdio praticado por povos indÃgenas no Brasil, as pesquisas sáo restritas à antropologia. Ele aparece sempre como um dos capÃtulos integrantes de estudos etnográficos mais amplos. Por considerar sua importância para a produçáo etnográfica, o antropólogo e professor Roberto Cardoso de Oliveira, dedicou atençáo ao tema no livro ”O Trabalho do Antropólogo publicado pela Editora Unesp em 1998. Em um dos capÃtulos faz referência ao povo Tapirapé, cujo território tradicional localiza-se no Estado do Mato Grosso. Analisa como a prática foi abandonada por aquele povo que para tanto contou com a colaboraçáo de um grupo de religiosas católicas, da  Congregaçáo das Irmázinhas de Jesus que convive os Tapirapé desde 1952.           Em se tratando de reflexáo bioética dentro de uma perspectiva laica e pluralista, pode-se considerar as obras The Fundations of Bioethics, publicada por Engelhardt em 1986 e Practical Ethics por Peter Singer, 1993, como referências principais para um estudo sobre o infanticÃdio. O primeiro traz uma contribuiçáo importante ao distingüir a condiçáo de pessoa enquanto agente moral – a quem define como pessoa em sentido estrito, e a pessoa em sentido social – que náo se constitui necessariamente em agente moral, a exemplo do recém-nascido. Para Engelhardt, embora o status de agente moral só seja alcançado posteriormente com seu desenvolvimento biológico e sobretudo social, o bebê já possui os mesmos direitos da pessoa em sentido estrito, mas observa que ”os direitos das pessoas, em um sentido social, sáo criados por comunidades particulares[5]. A partir desta compreensáo é possÃvel supor a existência de comunidades morais onde esses direitos náo sejam assegurados ao neonato ou até mesmo à criança até certa idade.            Discutindo sobre a condiçáo moral do feto e do recém-nascido, Singer cogita uma possÃvel justificaçáo do infanticÃdio e conclui que ”tirar a vida de um bebê deficiente náo equivale, moralmente, a tirar a vida de um bebê normal[6]. Para chegar a tal conclusáo toma em consideraçáo tanto a impossibilidade do desenvolvimento, como no caso dos anencefálicos, quanto o náo interesse dos pais pelo filho e a náo possibilidade de adoçáo por terceiros, hipótese que considera muito remota dependendo do grau de deficiência, mas possÃvel em relaçáo à s crianças normais.           A ocorrência da prática de infanticÃdio em alguns povos indÃgenas no Brasil sempre foi do conhecimento de náo indÃgenas que estabelecem relações de convivência com as respectivas comunidades onde ela ocorre. Por entender o ato como sendo uma prática tradicional cultural, servidores da agência indigenista do Estado, membros de organizações indigenistas náo governamentais, antropólogos e outros agentes externos adotaram sempre uma atitude de respeito e reconhecimento do direito interno dos povos em fazê-lo.           Mesmo havendo esta compreensáo, há no meio indigenista testemunhos de pessoas que em algum momento, impulsionadas por suas referências morais, acabaram intervindo de maneira isolada com o intuito de evitar a consumaçáo do sacrifÃcio de alguma criança. Essas experiências sáo sempre traumáticas e delas podem advir conseqüências graves, seja para o possÃvel sobrevivente, a comunidade ou quem praticou a intervençáo. Por essa razáo, considerando-se toda a complexidade que o tema impõe, embora haja uma concordância meritória sobre inaceitabilidade ética do infanticÃdio, há um consenso geral entre os agentes externos de que qualquer mudança em relaçáo a tal prática só será possÃvel a partir da tomada de decisáo do próprio povo indÃgena.           Ocorre que nos últimos dois anos, motivados por convicções religiosas, parlamentares da Frente Evangélica passaram a dedicar atençáo ao assunto e o trouxeram para ser debatido na Câmara Federal. O tema foi tratado pela primeira vez no ano de 2005, numa audiência pública promovida pela Comissáo da Amazônia. Dessa audiência, resultou uma ”Campanha Nacional a Favor da Vida e Contra o InfanticÃdio, lançada em 2006. Agora, em 2007, a questáo passou a ser tratada em forma de projeto de lei através do PL 1057/2007, de autoria do Deputado Henrique Afonso, do PT do Acre. Este projeto tem como finalidade dispor ”sobre o combate a práticas tradicionais nocivas à proteçáo dos direitos fundamentais de crianças indÃgenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas náo tradicionais.           Partindo do pressuposto de que o infanticÃdio constitui-se numa prática cultural nociva aos direitos humanos fundamentais, o referido PL dá-lhe um tratamento de homicÃdio comum. Estabelece que toda pessoa que tenha conhecimento de determinada gravidez de mulher indÃgena onde haja risco da criança ser sacrificada após o parto deverá obrigatoriamente comunicar à Funasa, Funai, Conselho Tutelar ou autoridade judiciária e policial, sob pena de responder pelo crime de omissáo de socorro.           Esta proposiçáo legislativa representa mais uma das formas autoritárias do Estado na tentativa de solucionar dilemas morais. Propõe a criminalizaçáo de práticas tradicionais revelando sua incapacidade de lidar com elas. É uma demonstraçáo clara de que, passados mais de 500 anos desde o inÃcio da colonizaçáo portuguesa nas terras brasileiras, a imposiçáo de valores morais da cultura invasora sobre a cultura invadida continua acontecendo.            Sob o aspecto jurÃdico, há um debate a ser feito quanto à universalidade dos Direitos Humanos Fundamentais e sua aplicaçáo de maneira absoluta, sem tomar em conta as especificidades étnico-culturais que necessariamente implicam também na consideraçáo dos Direitos Humanos Culturais e Sociais. Nesse contexto, o Pluralismo JurÃdico que reconhece a capacidade das diversas sociedades produzirem seus próprios códigos legais irá confrontar-se com o Direito Positivo que concebe o Estado como o Todo-Poderoso, detentor da moralidade e da legalidade, investido portanto da capacidade suprema de julgar e castigar como lhe convém.           Na justificativa para o referido PL faz-se referência à Convençáo 169 da OIT que no parágrafo 2 do art. 8º, assegura aos povos indÃgenas ”o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, contudo adverte que em casos de incompatibilidade com o sistema jurÃdico nacional e os direitos humanos, sejam estabelecidos procedimentos para solucionar o conflito. Em nosso entendimento, aqui há o indicativo correto para o diálogo e náo justifica a ofensiva de criminalizaçáo das práticas tradicionais estabelecida pelo projeto de lei.           Para a bioética, resta clara a necessidade de se estabelecer um relacionamento entre comunidades morais diferentes. A primeira corresponde a um minoritário grupo étnico com status social de povo, onde a prática do infanticÃdio é aceita, justificada e entendida como um dever moral. A segunda constitui-se numa macro sociedade com status de Estado Nacional, onde o infanticÃdio é considerado crime, com tipificaçáo e pena previstas no Código Penal. Há um confronto estabelecido entre o dever moral de matar crianças imposto aos membros de determinadas comunidades indÃgenas e a exigibilidade ética de salvar vidas por parte de agentes do Estado Brasileiro.            A própria situaçáo aqui encontrada é uma mostra clara que as questões de ordem moral jamais seráo solucionadas por mera imposiçáo de uma ordem jurÃdica externa alheia aos códigos morais das respectivas culturas. Dizemos isso pelo fato de que desde a chegada dos primeiros colonizadores ao entáo chamado ”novo mundo, os costumes indÃgenas, sobretudo aqueles que implicavam em sacrifÃcio humano, passaram a ser condenados, proibidos e passÃveis de castigos, mas mesmo assim perduram cinco séculos depois.           Entendemos que a bioética, por náo se furtar em explorar as fronteiras da moralidade e da ética, poderá contribuir com uma reflexáo em seu campo especÃfico sobre a realidade do infanticÃdio, a forma como ele é praticado por algumas comunidades indÃgenas no Brasil e apontar para a busca de soluçáo; sem que seja necessário, mais uma vez, se recorrer a medidas autoritárias por meio da imposiçáo de leis ou outros mecanismos repressivos, muitos deles já comprovadamente ineficazes como instrumentos de superaçáo do problema.           Para contribuir com essa reflexáo, recorremos à s considerações feitas acerca do InfanticÃdio, Aborto e Eutanásia Neonatal, a partir de trabalho realizado conjuntamente com pesquisadores da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de BrasÃlia.            Hoje, em aproximadamente ¾ dos paÃses do mundo, o aborto náo é considerado crime, ao contrário do infanticÃdio, denunciado como um atentado aos direitos humanos. Diante dessa realidade, Singer levanta uma discussáo sobre a aceitabilidade moral do aborto e a inaceitabilidade do infanticÃdio: O nascimento náo assinala uma linha divisória moralmente significativa. Náo vejo como se pode defender o ponto de vista de que os fetos podem ser ˜substituÃdos™ antes do nascimento, mas os recém-nascidos náo podem sê-lo. Tampouco existe qualquer outro aspecto, como por exemplo, a viabilidade, que leve a bom termo a divisáo entre o feto e o bebê [7].Na década de 1970, os filósofos Michael Tooley e Baruch Brody haviam chegado a esse mesmo entendimento. Mais tarde, Tooley publicou o livro Abortion and Infanticide, sugerindo que as pessoas que aceitam o aborto vêem-se obrigadas, por coerência, a aceitar o infanticÃdio. Da mesma maneira, diz ele, as pessoas que náo aceitam o infanticÃdio, também estáo obrigadas a náo aceitar o aborto (TOOLEY; 1983). A argumentaçáo deles é clara: a vida humana, do ponto de vista biológico, náo é por si mesma um direito. Náo pode se pensar em algo como um direito natural à sobrevivência. A sobrevivência do indivÃduo é, de fato, somente uma das possibilidades: de maneira especial entre os humanos, a neotenia obriga a comunidade a tomar conta do recém-nascido para que ele possa sobreviver. Desta forma, o direito à vida é algo que a sociedade determina, é um direito social, que define que aquele indivÃduo da espécie que nasceu ou está para nascer, recebe direito a isso, isto é, viverá enquanto acolhido no interior da comunidade.Desta forma, ambos, aborto e infanticÃdio, se equivalem por serem resultado de uma decisáo da comunidade de náo dar o direito à vida, seja ao feto ou ao recém-nascido, pelas mais diferentes motivações éticas da sociedade em pauta. Pois o direito à vida, tanto de um como do outro, é um direito social. No ano 1986, a justiça estadunidense, por meio da decisáo que ficou conhecida como sentença Bowen vs. American Hospital Association, passou a admitir que a ”um recém-nascido que sofra de atraso mental ou deformaçáo fÃsica pode ser ˜negada a assistência™, desde que com consentimento dos pais, mesmo que essa negaçáo de assistência conduza à sua morte. Destaque-se que a alimentaçáo é considerada uma forma de assistência[8].Em novembro de 2006 a Igreja Anglicana da Inglaterra divulgou seu posicionamento sobre a  ”eutanásia em bebês muito doentes. Apresentou razões humanitárias e econômicas para justificar sua decisáo. Diante do sofrimento do bebê e dos altos custos para a saúde pública, quando os recursos ali investidos poderiam salvar outras vidas, a suspensáo da assistência médica torna-se aceitável. Referindo-se à s declarações do bispo anglicano Tom Butler, a agência de noticias EFE informa que, para ele, „pode haver ocasiões em que a compaixáo cristá se sobreponha à regra de preservaçáo da vida a todo custo“ e um exemplo disso „é o tratamento desproporcional apenas para prolongar uma vida“ [9].A posiçáo adotada pelos anglicanos merece destaque em funçáo do caráter sagrado atribuÃdo à vida humana pelo cristianismo. O papa Joáo Paulo II, na encÃclica Evangelium Vitae reafirma essa condiçáo:mesmo por entre dificuldades e incertezas, todo o homem                  sinceramente aberto à verdade e ao bem pode, pela luz da razáo e com o secreto influxo da graça, chegar a reconhecer, na lei natural inscrita no coraçáo (cf. Rm 2, 14´15), o valor sagrado da vida humana desde o seu inÃcio até ao seu termo, e afirmar o direito que todo o ser humano tem de ver plenamente respeitado este seu bem primário.[10] Tanto a decisáo da Corte Americana, como a recomendaçáo da Igreja Anglicana, possibilitam a eutanásia neonatal, que se assemelha a uma forma de infanticÃdio, aquele decorrente da náo assistência ao bebê. Ressalva-se o fato da eutanásia neonatal estar justificada na inviabilidade do recém-nascido. Contudo, entre as comunidades indÃgenas, o critério de inviabilidade também é considerado como determinante para decidir por um infanticÃdio. A diferença reside nas condições dadas, nas possibilidades e recursos existentes. O que é inviável numa realidade, poderia náo ser na outra.Diante de tais reflexões, chegamos a um entendimento de que as categorias aborto, infanticÃdio e eutanásia neonatal estáo muito próximas e a possibilidade de se optar por uma delas será sempre influenciada por determinantes históricos de ordem cultural, religiosa, econômica e legal, dependendo sempre da comunidade moral onde a decisáo será tomada. Posto isto, reafirmamos a imperiosa necessidade do estabelecimento do diálogo na busca da superaçáo dos controversos dilemas morais. BIBLIOGRAFIAAGUIRRE, Francisco Ballón (1993). ”Antropologia JurÃdica de Emergências: unir los fragmentos. In: WRAY, Alberto (et ali). Derecho, Pueblos IndÃgenas y Reforma del Estado. (Colección Biblioteca Abya-Yala n.º 2) Quito : Ediciones Abya-Yala, 1993; p.174 – 181.ALBÓ, Xavier (1999). ”Principales CaracterÃsticas del Derecho Consuetudinario. In: Revista ArtÃculo Primero. n° 7, Santa Cruz de la Sierra, 1999.BARTOLOMÉ, Miguel A. & ROBINSON, Scott S. 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[1] Texto elaborado a partir de projeto de pesquisa apresentado ao Mestrado em Bioética da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB.
[2] Especialista e mestrando em Bioética pela UNB.
[3] SCHRAMM, FermÃn Roland. Bioética sem universalidade? Justificaçáo de uma bioética latino-americana e caribenha de proteçáo. In: Bases Conceituais da Bioética : enfofoque latino-americano. GARRAFA, Volnei; KOTOW, Miguel; SAADA, Alya (org.). Sáo Paulo: Gaia/Unesco; 2006, p.150.
[4] ROHDEN, FabÃola. A arte de enganar a natureza: contracepçáo, aborto e infanticÃdio no inÃcio do século XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003, p.127.
[5] ENGELHARDT, Jr. H. T. The Fundations of Bioethcs, 2ª ediçáo, originalmente publicada em inglês em 1996 e traduzida para português pelas Edições Loyola, Sáo Paulo, 1998, p. 191.Â
[6] SINGER, Peter. Ética Prática; traduçáo jefferson Luiz Camargo “ 3ª ediçáo. Sáo Paulo: Martins fontes, 2002 “ (Coleçáo biblioteca universal), p.200
[7] SINGER, Peter. Op. Cit., p. 198.[8] http://aborto.aaldeia.net/infanticidionosusa.htm.[9] http://noticias.terra.com.br/ciencia/interna/0,,OI1244047-EI238,00.html
[10] Joáo Paulo II – Carta EncÃclica EVANGELIUM VITAE, n.02. Roma, 1995.
« Kindermord und sexueller Kindesmißbrauch bei Indiostämmen Brasiliens: Gutachten des bischöflichen Indianermissionsrates(CIMI) gegen den Gesetzentwurf des Abgeordneten Henrique Afonso(PT) – Brasilien erleidet 2009 Rezession von 0,3 Prozent, laut OECD. Brasilia redet von 3 bis 3,5 Prozent Wachstum. Wer hat Recht? »
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